Há uma importante lição que só se aprende depois de muitos euros gastos e de muitos quilómetros percorridos em centros comerciais. A lição é a seguinte: as crianças não gostam de brinquedos. Da mesma forma que as crianças de hoje já não gostam de chocolate ou de doces como antigamente (existe mesmo um número exagerado de crianças que não gosta de musse de chocolate – prefere croquetes), o mesmo fenómeno, a mesma tragédia desabou no mundo dos brinquedos.
São vários os sintomas desta hecatombe. Um dos mais irritantes é visível nas festas de anos dos meninos: as crianças já nem abrem os presentes que os convidados levam. Elas querem lá saber, qualquer presente só pode ser mais um brinquedo inútil para encher o quarto – porque, se fosse alguma coisa especial, já a tinham. Não há dúvidas. Por isso, não é raro uma pessoa chegar a uma festa de anos, munida orgulhosamente de um presente – que também nem demorou assim tanto tempo a escolher –, entregar à criancinha aniversariante, que do nada emerge de um monte de prendas, e ela nem olha para a nossa dádiva envolta em papel de embrulho; diz um obrigado automático e nós ficamos a vê-la ser depositada num monte de presentes, também eles ignorados e para sempre esquecidos, como se fosse uma inútil casca de banana. Ora isto é bastante irritante, além de sintomático do referido fenómeno.
Outro sintoma são os próprios quartos das criancinhas. Os quartos dos nossos filhos não são quartos, são garagens com uma cama lá no meio; são arrecadações onde, por acaso, alguém dorme. É impossível a uma criança organizar uma qualquer brincadeira nestas condições. Por isso, o interesse em brincar morre logo ali à entrada do quarto. Para se conseguir brincar é fundamental ter muito poucos brinquedos, para que eles possam assumir vários personagens em várias brincadeiras durante anos a fio. Um soldado, por exemplo, tanto pode ser um soldado como um pai, ou um professor, ou um bandido, ou um domador de leões, ou um piloto, ou um futebolista, ou um jardineiro. Depende da brincadeira. Agora, se uma criança tem todos estes personagens à mão de semear, o soldado é apenas um soldado e ela só brinca com o desgraçado do soldado quando brinca às guerras. E se não quiser brincar as guerras, nunca brinca com o soldado. Mas também não o manda fora porque pode haver um dia em que lhe apeteça brincar às guerras. Quem sabe…
Mas o pior nem é o facto de os meninos terem milhares de brinquedos, terem todos os brinquedos, o pior é que os brinquedos não têm graça nenhuma. Nada. São tão completos, tão fáceis, tão previsíveis e tão automáticos que o próprio brinquedo rouba a brincadeira toda e diverte-se sozinho. Não há como brincar com os brinquedos de hoje. Carrega-se nos botões e os bonecos fazem tudo, os piões rodam, os carros fazem piruetas e as torradeiras de brincar torram mesmo. Não existe nada que se possa fazer para brincar com brinquedos que brincam sozinhos. Para ficar a ver, mais vale ver televisão e jogar no computador. Sempre é menos monótono.
É por isso, e por falta de tempo, que as crianças deixaram de brincar. Não é que elas não queiram, a chatice é que elas não sabem. Nem têm forma de aprender.
Deixou de ser preciso imaginar e inventar e deixou de existir paciência para o fazer. Pior: tudo o que as crianças podiam imaginar ou inventar está imaginado e inventado e disponível em qualquer loja perto de si. Já não existe o conceito “passar a tarde a brincar”. Onde? Como? Com quê? Com quem? Pois. O melhor é ir ver televisão e não desarrumar nada".
(Inês Teotónio Pereira , i-online 1 Set 2012)